COMO PEIXE NA ÁGUA

Ponhamos as coisas de modo simples, pão pão, queijo queijo: "Respirar (Debaixo d'Agua)" é a mais promissora curta-metragem portuguesa de há muitos anos. História de um adolescente a pisar os complicados terrenos dos primeiros amores, em tempos difíceis (na escola, em casa, com os amigos, a coisa não vai), é um filme que revela uma acuidade visual e um saber narrativo que usa o cinema para fazer coisas que só no cinema se podem. Revela consciência dos materiais e consistência no seu uso, o gosto pelas formas sem o tique do formalismo, é desempoeirado no trato e rigoroso plano a plano - coisas boas que fazem augurar um bom futuro ao realizador.

Chama-se António Ferreira, é de Coimbra e tem 29 anos. Chegou tarde ao cinema, depois de um 12º ano que deixou por completar, empregos vários, o mais duradoiro dos quais como programador de informática, um ano em Paris a ver como passavam as modas e como Portugal era pequeno, oito meses em que pôs o corpo ao serviço da Nação em regime de serviço militar obrigatório. Só foi para a Escola de Cinema em 94, mas concluiu o curso na Alemanha, na Deutsche Film und Fernsehakademie Berlin que o Projecto Erasmo lhe concedeu. Depois procurou trabalho, foi aparecendo (um deles, a assistência de realização de Joaquim Sapinho em "A Mulher Polícia") , seguiu a via normal de um primeiro subsídio do ICAM - curta-metragem , para fazer a mão - e com apoios vários e produção própria, conseguiu esticar o dinheiro e a vontade de contar histórias para os 45 minutos que Respirar (Debaixo d'Água) acabou por ter.

Mostrado em lusas terras (estreia em Fevereiro no festival "Curtas-metragens Portuguesas", no Forum Lisboa), candidatou-se a Cannes, na secção Cinefondation - e foi seleccionado. Veio de lá sem prémio algum, o que é o menos e dá para que o realizador se vá habituando a que o caminho não seja feito de facilidades. Mas trouxe algumas referências de imprensa estimulantes - o crítico do "Le Monde" elogiou-o, considerando-o um dos três melhores filmes da sua secção. E lamentou que o júri não se tenha dado conta disso. Entretanto, Paulo Branco fez promessas de estreia comercial em sala, no mesmo gesto com que aliciou António Ferreira para integrar a sua escuderia de cineastas portugueses: foi em Cannes que ultimaram acordos, Ferreira já entregou a Branco uma primeira versão de argumento para uma longa-metragem que, agora, fará o caminho do costume em matéria de financiamentos.

Pugna por um cinema pessoal, quer manter fidelidades criativas com algumas pessoas que o acompanharam na sua aventura, como o director de fotografia Marcus Lenz, ou a montadora, co-produtora e companheira de vida Dörte Schneider - mas afirma a necessidade de público para que o cinema se cumpra por inteiro. António Ferreira sente-se um pouco excêntrico em relação ao cinema português e não esconde a percepção de que cada vez há menos fronteiras.

"Expresso", por Jorge Leitão Ramos, 27.05.2000